Mulher indígena da etnia Xacriabá se destaca em conquistas para aldeias, no Norte de Minas

Quem conversa pela primeira vez com Eni Ferreira Leite de Oliveira, nem imagina o espírito de liderança, atrás da simplicidade de sua fala. E, muito menos, que ela tem o sangue dos primeiros habitantes do Brasil. A surpresa começa pelo seu nome de registro que não é indígena. Mas, isso é só a primeira impressão, pois tem um processo histórico de misturas de raças que explica o nome adotado. À medida que a prosa flui, fica nítida a disposição com que essa mulher rural defende e encampa as demandas e desafios de seu povo, marcado por uma vida em terra árida, de clima seco, escassez hídrica e muitas outras carências, que obrigam alguns homens a buscarem trabalho em canaviais e lavouras de café, em municípios do estado de São Paulo ou do Sul de Minas, delegando às mulheres tarefas que eles faziam.
Eni é da etnia Xacriabá, um dos poucos grupos indígenas que ocupam Minas Gerais. Por meio de um trabalho coletivo e diário, principalmente no associativismo, mas também em outras frentes, ela tem conseguido, ao longo dos últimos 15 anos, obter várias melhorias e benefícios para algumas aldeias dos xacriabás. O território desse grupo indígena fica em São João das Missões, no Norte do Estado. Tem 53 mil hectares e uma população estimada de 11 mil pessoas, a maioria do sexo feminino.
Apesar do tamanho da reserva, o raio de atuação de Eni, 49 anos, casada, mãe de sete filhos na faixa etária de 9 a 30 anos e avó de uma menina de 3 anos, está em oito aldeias, representadas pela Associação da Aldeia Riacho dos Buritis e Adjacências. E nem poderia ser diferente, afinal, ela foi presidente da entidade por quatro anos e tesoureira durante outros 11 anos. Também esteve no Conselho Municipal de Desenvolvimento Rural Sustentável (CMDRS) e, atualmente, ocupa o cargo de vice-presidente da associação, além de participar do Conselho Municipal de Cultura.
Entre algumas conquistas para os moradores das aldeias, que tiveram o empenho da líder indígena, vale pontuar o cercamento de três nascentes; a obtenção de uma despolpadeira e de uma casa para abrigar o equipamento. A despolpadeira é usada na extração de polpas das frutas nativas e cultivadas para a fabricação de sucos, destinados, por enquanto, aos moradores da reserva. A ideia é comercializar o suco e introduzi-lo na merenda escolar, assim que conseguirem a certificação.
A doação de um trator para os agricultores das comunidades foi outra conquista que a Eni batalhou junto com os moradores e que está sendo de grande utilidade nas lavouras. Outras realizações incluem, também, a implantação de um viveiro de mudas frutíferas e de plantas do cerrado para implantar pomares nas escolas da redondeza e o recebimento de 14 caixas de 25 mil litros, que servem para captar e reservar água de chuva. A tecnologia social, que ainda não alcança todos que precisam, é conhecida como cisterna “telhadão”.
Mas isso são só alguns exemplos de benefícios conquistados para uso coletivo, durante a gestão de Eni Ferreira, na associação. Ela ainda pensa em buscar soluções para problemas como a falta de renda e de água para muitas famílias das aldeias. “Penso em organizar uma feira aqui no território e comercializar a produção local para as pessoas da cidade (São João das Missões). Isso ajudaria muitas famílias daqui. Antes da pandemia da Covid-19, os consumidores vinham aqui pra comprar. O povo de fora é o que mais compra”, garante. Mas, enquanto o projeto não é colocado em prática, Eni revela mais uma vontade de ajudar a população local. “Estou lutando para conseguir a doação de um caminhão pipa e atender famílias que necessitam de água”.
Motivação e liderança
Segundo Eni, o que a motiva a estar sempre buscando soluções para as demandas das comunidades é a observação das necessidades das pessoas do lugar. “Eu via os problemas das pessoas daqui, sabendo que muitas não tinham a quem recorrer. Então, decidi lutar. Comecei na Pastoral da Criança. Depois fui para a associação e não vou sair por enquanto, pois isso aqui é só o começo. Precisamos de muito mais e por isso continuo. Já acostumei, não tenho como ficar parada. Tenho sempre de estar ajudando”, afirma.
“Todas as aldeias têm uma liderança indígena, escolhida pela população local. Dona Eni não é essa liderança. Mas ela exerce um papel de líder política e social e tem o respeito e a admiração da maioria das pessoas das aldeias, onde atua. Por ser uma pessoa extremamente simpática, receptiva e prestativa, ela consegue conquistar todos por onde passa, desde os aldeões até representantes de órgão públicos e políticos”, explica o engenheiro agrônomo Renato Alves Lopes.
Alves é do escritório local da Emater-MG de São João das Missões. A empresa pública de extensão rural é vinculada à Secretaria de Estado de Agricultura, Pecuária e Abastecimento (Seapa) e presta assistência técnica ao povo Xacriabá.
De acordo o agrônomo Renato, Eni tem importante participação em projetos que comercializam a produção local, como o Programa de Aquisição de Alimentos (PAA) e o Programa Nacional de Alimentação Escolar (PNAE). Ele também chama a atenção para as ações que a indígena desenvolve, em benefício do meio ambiente. “Ela participa da mobilização das famílias e divulgação das informações. E, como extrativista que é, também faz o trabalho de conscientização do pessoal para a necessidade de preservação das espécies vegetais nativas”, diz.
O chefe da coordenação técnica local da Fundação Nacional do Índio (Funai), Marcelino Mendonça de Aquino, mais conhecido por Lino, também reconhece o importante papel da Eni nas comunidades onde atua. “Ela é uma liderança feminina, que está se destacando muito. Desde que assumiu o trabalho na associação, houve um avanço bem grande nos projetos, na busca de recursos, no número de Pronafs (crédito rural). Ela é muito motivada, corre atrás”, argumenta. A Associação da Aldeia Riacho dos Buritis e Adjacências agrupa as aldeias Pindaíba, Forges, Itacarambizinho, Poções, Olhos d’água, Riacho dos Buritis, Pedrinhas e Peruaçu.
É importante ressaltar que, apesar da rotina de reuniões, visitas, orientações para os agricultores, mobilizações e até mediações de conflitos entre aldeões, Eni tem seus afazeres domésticos. Sem abrir mão dos cuidados com a casa, o marido, uma neta, e de três dos sete filhos que ainda moram perto, ela encontra tempo para se dedicar à roça, de onde retira a alimentação que sustenta a família. A mulher rural da etnia Xacriabá trabalha na horta e nas lavouras de mandioca, abóbora, melancia e feijão catador e, ainda, trata das galinhas, cavalos e outros animais da família. Eni reside na Aldeia Pindaíba, uma das que ela atua. No local, moram 17 famílias, o que deve somar cerca de 119 pessoas.
História
Segundo o técnico da Funai, Lino, ao longo de 200 anos, os Xacriabás passaram por um processo de miscigenação cultural e étnica, que misturou negros, brancos e índios. Como muitos trabalharam para fazendeiros da região, eles acabaram adaptando a própria cultura de subsistência. Hoje, vivem da agricultura, pecuária, criação de pequenos animais e artesanato. Também só falam o português. “Existe apenas uma família que fala fluentemente a língua original deles, que tem ligação com Xerentes e Xavantes (outros grupos indígenas brasileiros), mas as escolas locais estão tentando resgatar o idioma, assim como a religião e os cultos”, conta.
A reserva onde vivem os Xacriabás, em São João das Missões, só foi oficialmente reconhecida como pertencente a eles, em 1988, por decreto presidencial. “Quando a terra foi homologada, existiam pessoas que moravam próximas dela e viviam nas mesmas condições que os indígenas. Por isso, essas pessoas foram reconhecidas como da etnia, porque tinham sangue, muita mistura e relações familiares com os Xacriabás. Então, para separar, só com DNA e, na época, não tinha esse processo”, explica o técnico da Funai.
Lino define os Xacriabás como pessoas amigáveis, que convivem bem e tem uma harmonia grande com outras comunidades. Em sua opinião, o associativismo e as parcerias são caminhos para vencer os desafios da região, que tem características de cerrado em transição para caatinga, com pouca de água e muita rocha nos terrenos, que impede atividades de agricultura. “Carecemos de muitas técnicas para conviver e preservar esse bioma e é, justamente, por meio do associativismo e das parcerias com a Emater-MG e outros órgãos é que podemos trabalhar, sem afetá-lo. É necessário ter a proteção do bioma, mas é necessária também a área de produção, de criação”, pondera.
Segundo o funcionário da Funai, a Emater-MG é uma grande parceira dos Xacriabás. “Essa questão de trabalhar, motivando a produção de hortas para atender demanda do PNAE e dando condição, para quem tem possibilidade, de acessar recursos do Pronaf tem alavancado muito as atividades rurais aqui, principalmente na agricultura e pecuária”, afirma.
De acordo com informações do extensionista local, Renato Alves, a Emater-MG atua em todo o município de São João das Missões, abrangendo tanto a área indígena, quanto as comunidades rurais não indígenas. “Trabalhamos nos programas do PAA estadual, PNAE, Brasil Sem Miséria (BSM), Projeto Piloto, hortas comunitárias, além de ações na área ambiental, social e da educação. E, também, na emissão da Declaração de Aptidão ao Pronaf (DAP), na elaboração de projetos de crédito rural, orientação de normas, enquadramento e assistência técnica, entre outros”, pontua. Segundo o agrônomo, a agenda de atividades da empresa mineira inclui, ainda, ações de capacitação, associativismo e cooperativismo, além de palestras motivacionais para jovens, em escola pública.
Jornalista responsável: Terezinha Leite - Ascom/Emater-MG
Foto: Divulgação/Emater-MG